MEMÓRIAS DA DITADURA
MEMÓRIAS DA DITADURA
O DOCUMENTO
O ano de 1968 foi marcado por grandes acontecimentos, contestações e protestos que varreram as ruas do Brasil e do mundo, e que mudaram para sempre o cenário político, comportamental e cultural. No Brasil, a morte de Edson Luís, em 28 de março, foi o estopim para a mobilização dos movimentos estudantis contra a ditadura militar. No decorrer do ano, protestos como a Sexta-feira Sangrenta, um dos maiores confrontos entre o movimento estudantil e as forças de segurança do governo militar, e a Passeata dos Cem Mil marcaram a resistência dos estudantes diante ao governo ditatorial.
Porém, o principal marco do ano foi a implantação do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), maior símbolo do autoritarismo no país, que suspendeu direitos políticos e humanos. O AI-5 concedeu poder ao Presidente da República para dar recesso a Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas (estaduais) e Câmara dos vereadores (municipais), e durante os períodos de recesso, o poder executivo federal assumiria funções destes poderes legislativos. O AI-5 também permitia intervir nos estados e municípios sem respeitar as limitações constitucionais; suspender os direitos políticos, pelo período de 10 anos, de qualquer cidadão brasileiro; além de proibir manifestações populares de caráter político, suspender o direito de habeas corpus e impor censura prévia para jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas.
Para que esse período não seja esquecido, a Faculdade de Comunicação da UFJF dedicou uma semana para reflexão dos acontecimentos do ano. Foram três eventos, o XVI Erecom, o I Colóquio de Pesquisas do Ppgcom, e o III Seminário da Rede de Pesquisa JIM, que juntos trouxeram 22 jornalistas e pesquisadores, para discutir os 50 anos de 1968. O material desenvolvido neste site não apresenta cobertura do evento; a proposta aqui é fazer uma grande reportagem sobre as cinco décadas de 1968, abordando temas como o Movimento Estudantil, Música e Teatro, e a Censura da Imprensa durante o período mais rígido da ditadura militar no Brasil, além de falar sobre a Comissão da Verdade.
O LUGAR DE 1968 NA HISTÓRIA
O ano de 1968 ficou marcado pela Ditadura Militar no Brasil, mas também por vários outros contextos de países no mundo. As fronteiras se aproximaram com as manifestações e a luta pela paz e pela liberdade. O historiador e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Fernando Perlatto afirma que, através dos movimentos de libertação nacional na África e na Ásia, dos movimentos estudantis no Brasil e das marchas e lutas pelos direitos dos negros nos EUA, podemos perceber q
O ano de 1968 ficou marcado pela Ditadura Militar no Brasil, mas também por vários outros contextos de países no mundo. As fronteiras se aproximaram com as manifestações e a luta pela paz e pela liberdade. O historiador e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Fernando Perlatto afirma que, através dos movimentos de libertação nacional na África e na Ásia, dos movimentos estudantis no Brasil e das marchas e lutas pelos direitos dos negros nos EUA, podemos perceber que o mundo todo estava em circunstância de luta. Uma série de manifestações que de um modo ou de outro imprimiram e colocaram novas agendas para o mundo.
“Talvez esse seja o principal desdobramento de 68, a afirmação de novas agendas que, embora já estivessem sendo colocadas, tornaram-se mais sistemáticas e mais disseminadas”, afirma. De acordo com o historiador, os movimentos desse ano inspiram manifestações até os dias de hoje. Ele lembra que a partir de 2009, vimos a ascensão de novos movimentos sociais que abrangem “desde os indignados na Espanha, passando pelos EUA, os movimentos que ocorreram na Grécia de ocupação de praças, na Turquia, até chegarmos em junho de 2013 no Brasil e outras tantas manifestações”.
O RESGATE DO PASSADO É UM EXERCÍCIO ESSENCIAL A TODA A SOCIEDADE
Os movimentos sociais que marcaram o ano de 68 vieram como consequência de Atos Institucionais, como o AI5, que promoviam a censura; de perseguições e torturas; e de limitações imposta à imprensa. A arte e a cultura do país também foram fortes fatores de protesto. Movimentos e histórias que marcaram nosso país e que foram e que foram foco de investigação dos pesquisadores que integraram a Comissão Nacional da Verdade.
A partir dos anos 70, uma série de comissões da verdade começaram a ser criadas no mundo. A primeira comissão que se tem conhecimento foi em Uganda. As comissões da verdade fazem parte de um processo de justiça de transição de regimes autoritários, ditatoriais ou de momentos de guerra civil e conflitos armados para um modelo de governo mais democrático.
A justiça de transição do Brasil tem como primeiros movimentos a Lei de Anistia e as Diretas Já e se estende até os dias atuais em um processo longo e importante. No entanto, não vem sendo desenvolvido como deveria por conta da falta de políticas de memória.
MEMÓRIA É UM TRABALHO
A memória e o esquecimento são faces de um mesmo processo. “O que a gente elege rememorar? O que a gente mobiliza como as nossas memórias? O que a gente esquece naturalmente e o que a gente não consegue superar?”, questiona a jornalista Fernanda Sanglard, que integrou a Comissão da Verdade de Minas de Gerais. A pesquisadora defende que devemos enxergar o esquecimento como um processo positivo, uma vez que ele não se configura como um apagamento, mas como uma memória que conseguiu ser superada e que volta a ser ativada em algum momento em que se faz necessária.
“O Brasil não fez um bom trabalho de memória no que diz respeito a alguns períodos históricos e processos repressivos, isso contribui para o retorno do autoritarismo atualmente”, argumenta Fernanda. A ignorância sobre parte da nossa história demonstra a importância de superar o passado para que o que país já viveu em termos negativos não retorne.
Compartilhando da mesma opinião, a pesquisadora Marialva Barbosa aponta que há uma grande banalização da memória nos dias atuais. Seja por não conhecer ou por não querer conhecer. Tentar forçar um esquecimento para não ter que lidar com o que aconteceu. Ela ressalta que “produz-se um esquecimento como fuga ou produção de má fé, expressa na vontade de não informar sobre o passado e também por não querer saber”. Tal esquecimento comandado traz uma falta de compromisso sobre o que aconteceu e sobre o que ainda virá. Mas esse esquecimento comandado não exclui o que marcou tantas vidas.
“É exatamente contra esse esquecimento comandado que devemos construir um dever de memória, fazendo com que a história desse movimento monstruoso seja contada de forma completa e complexa, revelando a dimensão de barbárie dos que viveram naqueles anos sangrentos e cruéis que não devem ser esquecidos jamais”.
"Como testemunhas desse passado, temos um dever de memória de transformar o esquecimento em lembrança, revelando camadas de esquecimento que devem se transformar em memórias duradouras."
Marialva Barbosa
“O resgate do passado é indispensável; isso não quer dizer que o passado deve reger o presente, é este, ao contrário, que faz do passado o uso que quer. Haveria uma infinita crueldade em relembrar incessantemente a alguém os eventos mais dolorosos de seu passado; o direito ao esquecimento existe também.”
(TODOROV, 1995, p.24)
TODOROV, Tzvetan. Les abus de la mémoire. Paris, Arléa, 1995.
MOVIMENTO ESTUDANTIL
O movimento estudantil brasileiro foi importante foco de resistência e mobilização social à ditadura civil-militar. Os estudantes foram considerados um dos maiores inimigos do regime. Eles se organizavam em diversas entidades representativas, como os DCEs (Diretórios Centrais Estudantis), as UEEs (Uniões Estaduais dos Estudantes) e a UNE (União Nacional dos Estudantes). Lutavam pelo ensino público e gratuito para todos, pela democratização do ensino superior, por mais verbas para pesquisa e maior participação estudantil nas decisões do governo.
No ano de 1968, as manifestações do movimento estudantil se tornaram ainda mais fortes, principalmente após o decreto do Ato Institucional Nº 5 e as mortes de Edson Luís de Lima Souto e Benedito Frazão Dutra. Os estudantes foram mortos em março de 68, após disparos de militares em invasão ao restaurante universitário Calabouço, no Rio de Janeiro. Esse fato virou símbolo da repressão violenta do regime militar e o movimento estudantil começou a organizar cada vez mais manifestações públicas – muitas vezes reprimidas com violência.
As atividades da juventude brasileira no período provocaram sem dúvidas a alteração da representação do jovem na sociedade, trazendo novos paradigmas para sua participação na agenda política - paradigma que jamais voltaria a ser o mesmo.
MOVIMENTO ESTUDANTIL EM JUIZ DE FORA
Ponto estratégico entre os três maiores centros econômicos do sudeste (São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte), Juiz de Fora não cedeu à repressão após assistir ao início do golpe civil-militar saindo de seus quartéis. Apesar de não ter registrado nenhuma grande manifestação, a cidade foi “contaminada” pela agenda de combate à ditadura impulsionada pelo movimento estudantil.
Assim como no caso de outras instituições públicas do país, os estudantes da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) tomaram a frente nas ações. No centro de Juiz de Fora, esquina entre a Rua Floriano Peixoto e Avenida Getúlio Vargas, funcionava um núcleo cultural ligado ao Diretório Central dos Estudantes e aos Diretórios Acadêmicos. Lá, a articulação da militância estudantil tinha livre espaço para debater e difundir suas ideias. No prédio também funcionava o núcleo de poesia, o núcleo de música “Som Aberto”, o Centro de Cultura e a produção da revista cultural “Delírio”.
Na Faculdade de Comunicação da UFJF, foi produzido pelo movimento estudantil uma revista de oposição ao regime, chamado Bar Brazil. Com o objetivo de propor discussões e debates acerca do que acontecia no país, o veículo teve três edições.
Revista “Bar Brazil” – Arquivo pessoal de Ivan Barbosa
Disponível em: http://www.ufjf.br/ppghistoria/
O movimento estudantil juiz-forano foi também catalisador do movimento sindical na cidade. Segundo o jornalista Jorge Sanglard, em entrevista concedida a Tamiris Toschi, então estudante da Faculdade de Comunicação da UFJF, em 2014, o movimento trouxe a Juiz de Fora um ilustrador famoso de Belo Horizonte. Ele foi responsável pela criação de um quadrinho, no qual o presidente de longa data do sindicato têxtil era, ao mesmo tempo, todos os personagens de um circo, entre eles o palhaço. Na obra, o personagem era por fim atirado para fora do circo com um canhão. O quadrinho foi distribuído para os profissionais da área, o que gerou uma mobilização responsável por levar a oposição à vitória na eleição presidencial do sindicato pela primeira vez.
O fato aconteceu também com o sindicato dos transportes e fortaleceu ainda mais a oposição ao status quo na cidade.
Desta forma, atuando ativamente na oposição ao regime militar e em conjunto com outros grupos e movimentos sociais, os estudantes representaram uma grande força de contestação da ditadura.
É inegável que o movimento estudantil brasileiro foi Impulsionado pelas ações dos jovens na França, em maio de 1968. Para muitos estudiosos, as manifestações francesas serviram como ponto de ruptura da forma vigente de compreensão do corpo, da sexualidade e da família, que jamais seria recuperada. Porém, para Fernando Perlatto, historiador e professor da UFJF, as atividades no Brasil tinham suas particularidades e não podem ser encaradas como mero reflexo do objeto que serviu de inspiração.
CENSURA NA MÍDIA
"Fica terminantemente proibida qualquer publicação ou crítica ao sistema de censura, seu fundamento e sua legitimidade."
Durante a Ditadura Militar, os veículos de comunicação tiverem suas infraestruturas modernizadas e ampliadas com o uso de satélites e expansão das telecomunicações. Mas, apesar da criação da FUNARTE (Fundação Nacional das Artes), da EMBRAFILME (Empresa Brasileira de Filmes), do Conselho Nacional de Cultura e do Pró-Memória, as mídias sofriam graves censuras. A ideia dos militares era “integrar para não entregar o país para os comunistas”.
“O efetivo desenvolvimento das telecomunicações no Brasil teve início com os governos militares. Conforme Magalhães (1995), o Movimento Militar de 1964, preocupado com a integração nacional do país em virtude de sua Doutrina de Segurança Nacional, e ao mesmo tempo reconhecendo ser fundamental para o desenvolvimento nacional uma infra-estrutura moderna de telecomunicações (inclusive postais), tomou uma série de medidas para disciplinar e consolidar esse campo”.
Trecho do artigo de Trindade e Trindade (2003)
1968 NAS PÁGINAS DOS JORNAIS
O PAPEL DO FOTOJORNALISTA
Junto às páginas de jornais, o fotojornalismo ajudava - e ajuda - a contar a história do brasil e do mundo, retratando a realidade com sensibilidade. O fotojornalista Evandro Teixeira iniciou sua carreira em 1958 e ingressou no Jornal do Brasil em 1963, por onde trabalhou por quase 50 anos. No JB, cobriu, entre outros momentos, a Passeata dos 100 mil durante a Ditadura Militar.
CENSURADO: IMAGENS QUE NÃO PUDERAM SER VISTAS
As fotos a seguir integraram a exposição “AI(s) Nunca Mais – Imagens que o Brasil não viu, ou esqueceu”, montada no Centro Cultural da Caixa Econômica Federal, em 2008, idealizada, coordenada e com curadoria da jornalista Denise Assis, no ano de 2008, para marcar os 40 anos da edição do AI-5.
Por perceber que as fotos censuradas continuavam na clandestinidade, nos arquivos e gavetas das redações, a jornalista pesquisou e reuniu 180 imagens entre ampliações e reprodução das cartelas de contatos utilizadas pelos editores, na época. A exposição foi considerada pela Revista Veja, uma das cinco melhores daquele ano e no período que ficou em cartaz, - um mês – foi vista por 3.170 visitantes.
Confira mais informações no áudio de Denise Assis:
O SILENCIAMENTO DAS RÁDIOS
O formato do radiojornalismo de síntese noticiosa começa em 1941 com o Repórter Esso. Pela primeira vez, o radiojornalismo no Brasil começa a produzir notícias e não apenas reproduz o que era publicado nos jornais impressos. O Repórter Esso era um jornal tido como oficial, à medida que se propunha a traduzir o discurso oficial dos governos.
Segundo o jornalista e pesquisador João Batista Abreu, que teve passagens profissionais pelo Jornal do Brasil, Rádio Jornal do Brasil, O Globo, TV Globo, TV Educativa e Jornal do Commercio, a marca do radiojornalismo brasileiro era ser chapa branca, com algumas exceções, as quais considera honrosas, como a Rádio Jovem Pan (SP), Rádio Jornal do Brasil (RJ) e a Continental (PR).
Ana Baumworcel (2014) fez uma análise da retórica dos programas retrospectivos da Rádio Brasil nos anos de 1964, 1968 e 1975, todos eles feitos durante a ditadura militar brasileira. Segundo ela, no primeiro ano, está presente uma “retórica de adesão”. A posição da emissora é de reprodução do discurso da ordem cultural dominante; essa construção começou antes do golpe, em 1963, não só apoiando, como também contribuindo para a sua realização.
No programa exibido no ano de instauração do AI-5, a emissora teve duas posições enunciativa distintas: uma delas seguiu a imposição do regime, silenciando falas e ocultando fatos, por exemplo. Já a outra, mostrava a posição de figuras contrárias aos militares e perseguidas pelo governo.
A IMPORTÂNCIA DA TV
Diferentemente dos outros meios, a televisão não era um veículo de comunicação de massa no início dos anos 1960. O crescimento deu-se por meio do investimento do regime militar e de grupos estrangeiros. O objetivo dos militares era criar uma rede que unisse todo o país, em nome da “integração nacional”.
De acordo com o pesquisador Flávio Porcello, o golpe militar fomentou o surgimento da TV Globo, em 1965, nesse intuito da integração. Ele afirma que nessa época, a TV não tinha um papel predominante político, mas também tinha todo seu conteúdo vistoriado pela censura.
A CENSURA NAS TELENOVELAS
A programação televisiva na época da ditadura era composta por telejornais, programas musicais, de variedades e seriados norte-americanos. A telenovela começou a se consolidar em meados dos anos 1960, baseadas em roteiros de tramas do rádio - como Direito de Nascer, da TV Tupi. Porém, as telenovelas só foram consolidadas como o grande gênero televisual na década de 1970. Escritas por vários autores da esquerda, que tentavam abordar temas libertários em suas tramas, o formato sofreu severas censuras, como foi o caso de Roque Santeiro, de Dias Gomes, cuja transmissão foi cancelada no dia de sua estreia.
O pesquisador Igor Sacramento, que estuda a censura nos roteiros de telenovela, analisa o envolvimento do dramaturgo com os campos da produção cultural (teatro, rádio, cinema e televisão) e com o campo da política entre 1939 e 1999. Em seu livro “Dias Gomes: um intelectual comunista nas tramas comunicacionais”, é possível perceber que ele atuou como mediador cultural, tendo a sua trajetória marcada por diversas hibridizações e interlocuções entre o campo da política e da cultura em configurações históricas distintas.
Conheça como funcionava a censura nas telenovelas brasileiras:
Guilherme Fernandes (2018) apresenta o processo da censura nas telenovelas e realiza uma análise de documentos preservados no Arquivo Nacional de Brasília. O autor mostra como a mentalidade censória e seus valores de moralidade estavam impressos nos pareceres dos censores.
ARTE E CULTURA EM 1968
As manifestações artísticas são formas da sociedade expressar opiniões e sentimentos sobre diversos aspectos. Durante o período do regime militar no Brasil não foi diferente, a arte estava presente como forma de resistência e oposição a opressão da ditadura no contexto do país. Entre os movimentos artísticos mais representativos da época estavam a música, o cinema e o teatro.
MOVIMENTOS MUSICAIS E
O FESTIVAL DE 1968
A música foi um forte instrumento para a expressão da opinião popular, promovendo o debate, levando as pessoas para as ruas para se manifestarem contra o governo militarista. Com a ajuda dos festivais, a música foi impulsionada e se tornou cada vez mais importante para esse movimento. Ao habitual sentido de pertencimento proporcionado pelos diferentes ritmos, pelas diferentes “tribos”, somou-se um engajamento inédito. Era uma disposição de fãs e ouvintes em defender, com urros e vaias, suas canções preferidas e seus ídolos musicais.
Além do momento político ou da violência policial no Brasil, o responsável por transformar a música popular em objeto de disputa e de calorosa torcida foi o modelo de espetáculos competitivos, criado em 1965 na TV Excelsior, que manteve a hegemonia da produção fonográfica brasileira até 1972: os festivais de música popular brasileira.
No Brasil, dois festivais de música foram os grandes destaques. O Festival de Música Popular Brasileira foi criado em 1965, por Solano Ribeiro, com a intenção de disseminar a música nacional, atrair audiência e, consequentemente, arrecadar recursos financeiros.
Já o Festival Internacional da Canção foi criado por Augusto Marzagão, em 1966, com um total de sete edições. Cada edição contava com duas fases: a nacional, para escolher a melhor canção brasileira, e a internacional, para eleger a melhor canção de todos os países participantes — a concorrente brasileira era a vencedora da fase nacional.
Em um segundo momento, os festivais, que inicialmente tinham um perfil comercial para a indústria dos discos, ganham um tom completamente diferente. Artistas como Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, entre outros passaram a compor músicas que contestavam o atual regime. As canções possuíam mensagens irônicas e subliminares, tendo em vista a submissão à censura presente na época.
Foto: Reprodução/Wikipédia
Foto: Reprodução/Universo Retrô
Foto: Arquivo/AE
No Festival de Música Popular, promovido pela TV Record, em 1967, Edu Lobo e Capinam levaram o primeiro prêmio, com “Ponteio”. A música faz alusão à violência dos militares na letra e, nas entrelinhas, eles pediam o fim da ditadura.
“Certo dia que sei / Por inteiro / Eu espero não vá demorar / Este dia estou certo que vem / digo logo o que vim / Pra buscar (…) / Vou ver o tempo mudado / E um novo lugar pra cantar”.
De acordo com jornalista e pesquisadora Talita Magnolo, que estuda os Festivais de Música Popular Brasileira, estes carregavam uma certa ironia, pois ao mesmo tempo que davam voz às pessoas, eram transmitidos pela televisão sob a censura da época.
Então, os festivais tiveram uma importância justamente por ser em um palco onde os artistas conseguiam falar através da música, das canções, e também angariar os seguidores em um futuro como aconteceu em 1968 com pessoas que levaram para as ruas como hinos de militância.”
"Quem sabe faz a hora não espera acontecer"
As manifestações artísticas são formas da sociedade expressar opiniões e sentimentos sobre diversos aspectos. Durante o período do regime militar no Brasil não foi diferente, a arte estava presente como forma de resistência e oposição a opressão da ditadura no contexto do país. Entre os movimentos artísticos mais representativos da época estavam a música, o cinema e o teatro.
Assim que foi anunciado o resultado do júri do Festival Internacional da Canção de 1968, no Rio, o público que lotava o Maracanãzinho começou a vaiar a vencedora, “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque. A maior parte da plateia torcia pela vitória desta que é considerada a mais emblemática canção de protesto lançada durante a ditadura militar, com seu refrão “Vem, vamos embora/ que esperar não é saber/ quem sabe faz a hora/ não espera acontecer”.
Como explica Talita, muitas pessoas que frequentavam os festivais já iam com a intenção de torcer para determinado candidato, música ou escolhiam no momento da apresentação. Ao mesmo tempo, outras pessoas tinham expectativas de um posicionamento político dos artistas através da músicas que entoavam.
“Vocês não estão entendendo nada!”
Neste mesmo ano, na terceira edição do Festival Internacional da Canção, Caetano Veloso apresentou a música “É Proibido Proibir”, uma canção que evocava um dos gritos da juventude que protestou em Paris em maio de 1968. Hostilizado pela plateia ao subir ao palco com roupas e acessórios coloridos para se apresentar, Caetano respondeu de forma impiedosa. Com um discurso irado, acompanhado pelas guitarras dos Mutantes, Caetano contra-atacou: “Vocês não estão entendendo nada!”. Naquele discurso, Caetano deixou frases emblemáticas e que são lembradas por sua rispidez. A mais famosa e profética delas: “Essa é a juventude que diz que quer tomar o poder? Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”.
CINEMA NOVO E OS ANOS DE CENSURA
O cinema brasileiro se mostrou forte durante os anos de censura. A Sétima Arte estava num momento de alavancada de sua produção quando se instaurou o golpe e, portanto, teve que se adaptar com novas narrativas. Nesse contexto, o Cinema Novo, criado no início dos anos 60, cresceu colocando em pauta a realidade do povo brasileiro, principalmente do povo nordestino e das favelas do Rio de Janeiro. Essa estética realista recebeu também o nome de “Estética da fome”, que ganhou destaque internacional por seguir um caminho diferente do modelo hollywoodiano.
"O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente o seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, antes escrito pela literatura de 30 e agora fotografado pelo cinema de 60", disse Glauber Rocha, um dos precursores deste movimento, diretor e roteirista do longa “Deus e o Diabo na terra do sol”, em seu manifesto “A estética da fome”’.
Foto: Reprodução/Plano Crítico
Denise Tavares, pesquisadora de cinema e professora da Universidade Federal Fluminense, considera que o Cinema Novo passou por um momento de se reinventar a partir de 1968 na tentativa dos cineastas de chamar atenção de novos públicos.
A chegada do Ato Institucional nº 5 (AI-5) garantia a censura prévia de músicas, peças teatrais, filmes e programas de TV e trouxe complicações para o cenário cinematográfico do país. Filmes com viés mais politizados sofriam cortes drásticos ou eram cancelados pela repressão e censura da época, reprimindo qualquer tipo de mensagem “ideológica” ou “subversiva” que pudesse se disseminar. Além da censura, a perseguição política levava muitos artistas, tanto no mundo da música, quanto do cinema e da literatura, a se exilarem em outros países.
Com a criação da Empresa Brasileira de Filmes S.A. (Embrafilme) em 1969 pelo governo militar, muitos cineastas encontraram uma oportunidade para fazer seus filmes com financiamento do governo, mas teriam que deixar as produções mais politizadas de lado, apostando em narrativas mais brandas para passar pelos censores.
A partir da revolução trazida pelo cinema novo, nascem novos movimentos cinematográficos, como o “Cinema Marginal”. Com grande força entre 1968 a 1973, o cinema marginal trazia em sua narrativa o movimento de contracultura, com um ar revolucionário e de guerrilha, tendo forte relação com o tropicalismo. As produtoras Boca de Lixo e Bel-Air Filmes foram as responsáveis pelas principais obras feitas nesse período. Dentro desse movimento surgiram produtores como José Mojica Marins, o “Zé do Caixão”, e os Trapalhões. Neste contexto surgiram também as pornochanchadas, misturando o erotismo e humor barato, com histórias de relacionamentos entre patrões e empregadas, traições e outros envolvimentos amorosos. Essas produções de baixo custo também não ficaram livres da censura militar.
Foto: Reprodução/Vix
O cinema brasileiro sofreu uma crise no início da década de 1980, com o final da Ditadura Militar e a crise econômica que se instalou no país. A produção de filmes começou a cair e poucos filmes são lançados durante esse período. Para piorar a situação do cinema, o governo de Fernando Collor fecha o Ministério da Cultural e acaba com as empresas responsáveis pelo cinema do país.
As coisas só melhoram a partir da década de 1990, quando o governo de Itamar Franco reabre o Ministério da Cultura e cria a Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual.
ARTES CÊNICAS NO MOVIMENTO DE 1968
Nem o teatro resistiu a censura causada pelos anos de ditadura. Muitas peças foram censurada durante o regime e principalmente com a chegada da AI-5. Sendo uma arte com contato direto com o público, o teatro foi visto como possível forma de subversão social, “podendo causar estragos para a nação”.
No Rio de Janeiro, o Centro Popular de Cultura produzia o espetáculo Opinião, com a presença de Maria Bethânia, Nara Leão, João do Vale e Zé Keti cantando canções políticas e narrações sobre problemas sociais num texto de Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes. Opinião foi um grande marco para a época.
Foto: Acervo O Globo
Com a reinvenção do teatro após a censura, as grandes companhias tiveram que se adaptar ao novo governo, criando novos experimentos para as peças teatrais. O dramaturgo juiz-forano José Luiz Ribeiro relata que o processo criativo depois da instauração da AI-5 era mais longo por precisar revisar todas as peças, tentando encobrir as mensagens sobre política nas narrativas das peças. Ele cita o exemplo da peça ‘Diário de um Louco’, produzida pelo Grupo Divulgação, a qual é membro fundador, que em determinado momento ao se referir sobre a “revolução de 64” o personagem principal tapava a boca com um pano, dando alusão a censura sofrida.
Nesse clima de radicalização, a censura proíbe várias peças, e teatros de São Paulo e Rio de Janeiro entram em greve por três dias. Muitos artistas e dramaturgos tiveram que se exilar durante esse período, seguindo passos de músicos e escritores que também fugiram por perseguição política. Mas com a censura, vieram novas formas de se fazer o teatro, novas experimentações dramatúrgicas, na tentativa de driblar os olhares dos censores. Surgiu na França o Teatro do Oprimido, criado por Augusto Boal em seu exílio, trazendo a ideia da democratização teatral, a transformação social e as formas de expressão por qualquer pessoa.
VOZES DA DITADURA: FAMÍLIA GUEDES
“Nós optamos por lutar. Você podia se submeter ao regime ditatorial, mas nós decidimos ir à luta”. Assim, José Luiz Moreira Guedes, 75 anos, comenta sobre sua participação e de sua esposa, Nair Barbosa Guedes, 73, nos movimentos contra a ditadura civil-militar: por escolha. Em meio a um governo autoritário, o casal não deixou de lutar por seus ideais e participou ativamente de movimentos em prol da democracia. Correram riscos, foram presos, e o exílio se tornou uma necessidade em 1974.
Participações em manifestações, repressões sofridas, prisões, fugas e amizades perdidas. Essas são algumas das memórias de José Luiz e Nair sobre o período mais sombrio da história do Brasil. A ditadura teve seu fim em 1985, mas as experiências pelas quais o casal passou permanecem vivas até hoje em suas lembranças.
Estudante de Medicina da Universidade de Minas Gerais - atual Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) -, José Luiz se mostrou fortemente engajado dentro do movimento estudantil. Logo nos primeiros anos de faculdade se tornou presidente do conselho deliberativo e fiscal do Diretório Acadêmico Alfredo Balena. Em 1966, foi presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE) e, mais tarde, da União Nacional dos Estudantes (UNE).
A escolha por ir à luta e ser um dos líderes dos movimentos iniciou-se cedo. Antes de 64, ainda adolescente e na escola, José Luiz já era o representante de sua turma. Começou a se envolver no movimento estudantil após um conflito em sala de aula com um professor. Ele relembra o ocorrido e, também, como se deu a primeira luta de rua na qual participou. Orgulhoso defensor da democracia, ele afirma que as primeiras lutas foram essenciais à sua formação para, sobretudo em 1968, ter capacidade de enfrentar o regime ditatorial.
Diferentemente do marido, Nair diz ter criado uma consciência política após ingressar na universidade. Nascida em Araguari (MG), cresceu na zona rural e entrou na Faculdade de Serviço Social da PUC-Minas justamente em 1964, ano do golpe. De acordo com ela, foi um verdadeiro “banho de água fria”. A tristeza foi grande, mas, apesar disso, não se rendeu nem largou mão de ir em busca de seus direitos.
Mesmo dizendo que se tornou mais politizada depois de iniciar a graduação, Nair, já tinha contato com o movimento estudantil desde os 14 anos. Assim como José Luiz, ela iniciou sua militância ligada à Igreja Católica através da mesma entidade: a Ação Popular. “Foi uma verdadeira escola para mim. A Ação Católica, que contava com a Ação da Juventude e a da Juventude Universitária, tinha uma maneira muito peculiar de trabalhar com os jovens. Eram organizados encontros que proporcionavam reflexões, palestras e vivências com as comunidades”, declarou Nair. Ela afirma que essa formação foi uma base para criar consciência da realidade social, tornando-se determinante para a escolha da carreira que iria seguir e para batalhar contra um governo autoritário.
Logo no primeiro ano do golpe, os estudantes tiveram que se empenhar contra a Lei Suplicy de Lacerda - sobrenome do então ministro da Educação, Flávio Suplicy de Lacerda -, que determinava a proibição de atividades políticas nas organizações estudantis, tornando-as ilegais. Aprovada pelo Congresso em novembro daquele ano e, sancionada por Castelo Branco, a lei foi vista pelos estudantes como uma revogação do livre direito de se manifestarem.
Diante disso, os estudantes poderiam “se submeter ou optarem por continuar lutando”. E como era de se esperar, José Luiz continuou a enfrentar o autoritarismo. Mesmo diante de uma lei que decretava a extinção de entidades estudantis, ele decidiu se tornar presidente da UNE. Em sua gestão, a batalha contra a Lei Suplicy se manteve como um dos maiores desafios. José Luiz conta como era o desejo do governo enquadrar a representação estudantil.
A determinação de José Luiz e Nair pela retomada da democracia era tão grande, que, mesmo grávida da primeira filha, ela se dispôs a participar da passeata pelo Dia Nacional de Luta - convocado pela UNE. O episódio ficou conhecido como “O Massacre da Praia Vermelha”. De acordo com José Luiz, eles foram massacrados e, depois da invasão à faculdade, foi preciso sair às pressas. “Nós estávamos ocupando a faculdade de Medicina e enfrentando várias dificuldades. A repressão foi grande. Foi um dia marcante nas nossas vidas”.
Os militares adentraram o prédio na madrugada. José Luiz conta que a medida que os estudantes “cediam” espaços para as autoridades, conseguiam se fortalecer no espaço seguinte. Até que chegaram na parte mais alta da Faculdade Nacional de Medicina (atual UFRJ). A partir daí, se formou uma espécie de “corredor polonês” que, com muita pancadaria, arremessava os estudantes para dentro dele. “Nós quase fomos mortos nesse corredor. Fomos asfixiados e eles literalmente pisavam na gente”.
Como era o presidente da UNE, José Luiz precisava ainda mais de cuidado contra as agressões. Se não fosse Nair e mais outras duas amigas, a situação dele poderia ter sido ainda pior.
Depois disso, muita coisa ainda estava por vir na vida dos dois. José Luiz ressalta que 1968 foi o período mais radical do regime militar e, uma das motivações para continuar na luta era ter consciência de que a população queria um país diferente. “Eles (os militares) dentro da sociedade sempre foram derrotados. Nós éramos a maioria e queríamos mudar o cenário”. Em 68, diante de vários acontecimentos, dois que certamente ainda estão marcados na memória de José Luiz são: a passeata dos 100 mil e o Congresso de Ibiúna.
PARA SABER MAIS SOBRE 1968
O que é isso, companheiro?
O filme conta a história de um grupo de guerrilha de esquerda que assume a luta armada contra o governo militar, que em 1968 decreta o Ato Institucional 5, que impõe a censura sobre a imprensa e suspende uma série de direitos civis. Eles organizam o sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, para negociar a liberdade de companheiros presos.
Imagem: Reprodução/RioFilme
Batismo de Sangue
Em São Paulo, no final dos anos 1960, o convento dos frades dominicanos torna-se uma trincheira de resistência à ditadura militar que governa o Brasil. Passam a apoiar o grupo guerrilheiro Ação Libertadora Nacional, são considerados comunistas, são presos e torturados.
Imagem: Divulgação/Elo Company
Pesquisa sobre a tortura política no período da ditadura, que resultou em um relatório e livro, posteriormente virando site. O projeto foi uma iniciativa do Conselho Mundial de Igrejas e da Arquidiocese de São Paulo, que trabalhou sigilosamente durante cinco anos sobre 850 mil páginas de processos do Superior Tribunal Militar.
1968: O ano que não terminou
O livro do jornalista Zuenir Ventura volta ao ano emblemático da história brasileira, marcado pela ditadura militar e sua repressão. Publicado originalmente em 1988, o livro aborda a conjuntura e os aspectos políticos, sociais e culturais de um ano que marcou a história.
Imagem: Reprodução/Planeta
1968 de Maio a Dezembro: Jornalismo, Imaginário e Memória
O livro organizado pelos três professores Juremir Machado, Álvaro Laranjeira e Christina Ferraz Musse, há depoimentos de norte-americanos que viveram 1968 em Nova York. E o olhar de quem viveu o 1968 francês em Paris: Michel Maffesoli, Gilles Lipovetsky, Dominique Wolton, Luc Ferry. Ou entre Paris e o exterior, como Edgar Morin. Ou na cadeia como Régis Debray. Ou como adolescente, caso de Michel Houellebecq. Ou no interior da França, como o historiador Jean-Pierre Le Goff, autor de “Maio de 68, a herança impossível”.
Imagem: Reprodução/Sulina
VOZES DA DITADURA: FAMÍLIA GUEDES
“Nós optamos por lutar. Você podia se submeter ao regime ditatorial, mas nós decidimos ir à luta”. Assim, José Luiz Moreira Guedes, 75 anos, comenta sobre sua participação e de sua esposa, Nair Barbosa Guedes, 73, nos movimentos contra a ditadura civil-militar: por escolha. Em meio a um governo autoritário, o casal não deixou de lutar por seus ideais e participou ativamente de movimentos em prol da democracia. Correram riscos, foram presos, e o exílio se tornou uma necessidade em 1974.
Participações em manifestações, repressões sofridas, prisões, fugas e amizades perdidas. Essas são algumas das memórias de José Luiz e Nair sobre o período mais sombrio da história do Brasil. A ditadura teve seu fim em 1985, mas as experiências pelas quais o casal passou permanecem vivas até hoje em suas lembranças.
Estudante de Medicina da Universidade de Minas Gerais - atual Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) -, José Luiz se mostrou fortemente engajado dentro do movimento estudantil. Logo nos primeiros anos de faculdade se tornou presidente do conselho deliberativo e fiscal do Diretório Acadêmico Alfredo Balena. Em 1966, foi presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE) e, mais tarde, da União Nacional dos Estudantes (UNE).
A escolha por ir à luta e ser um dos líderes dos movimentos iniciou-se cedo. Antes de 64, ainda adolescente e na escola, José Luiz já era o representante de sua turma. Começou a se envolver no movimento estudantil após um conflito em sala de aula com um professor. Ele relembra o ocorrido e, também, como se deu a primeira luta de rua na qual participou. Orgulhoso defensor da democracia, ele afirma que as primeiras lutas foram essenciais à sua formação para, sobretudo em 1968, ter capacidade de enfrentar o regime ditatorial.
Diferentemente do marido, Nair diz ter criado uma consciência política após ingressar na universidade. Nascida em Araguari (MG), cresceu na zona rural e entrou na Faculdade de Serviço Social da PUC-Minas justamente em 1964, ano do golpe. De acordo com ela, foi um verdadeiro “banho de água fria”. A tristeza foi grande, mas, apesar disso, não se rendeu nem largou mão de ir em busca de seus direitos.
Mesmo dizendo que se tornou mais politizada depois de iniciar a graduação, Nair, já tinha contato com o movimento estudantil desde os 14 anos. Assim como José Luiz, ela iniciou sua militância ligada à Igreja Católica através da mesma entidade: a Ação Popular. “Foi uma verdadeira escola para mim. A Ação Católica, que contava com a Ação da Juventude e a da Juventude Universitária, tinha uma maneira muito peculiar de trabalhar com os jovens. Eram organizados encontros que proporcionavam reflexões, palestras e vivências com as comunidades”, declarou Nair. Ela afirma que essa formação foi uma base para criar consciência da realidade social, tornando-se determinante para a escolha da carreira que iria seguir e para batalhar contra um governo autoritário.
Logo no primeiro ano do golpe, os estudantes tiveram que se empenhar contra a Lei Suplicy de Lacerda - sobrenome do então ministro da Educação, Flávio Suplicy de Lacerda -, que determinava a proibição de atividades políticas nas organizações estudantis, tornando-as ilegais. Aprovada pelo Congresso em novembro daquele ano e, sancionada por Castelo Branco, a lei foi vista pelos estudantes como uma revogação do livre direito de se manifestarem.
Diante disso, os estudantes poderiam “se submeter ou optarem por continuar lutando”. E como era de se esperar, José Luiz continuou a enfrentar o autoritarismo. Mesmo diante de uma lei que decretava a extinção de entidades estudantis, ele decidiu se tornar presidente da UNE. Em sua gestão, a batalha contra a Lei Suplicy se manteve como um dos maiores desafios. José Luiz conta como era o desejo do governo enquadrar a representação estudantil.
A determinação de José Luiz e Nair pela retomada da democracia era tão grande, que, mesmo grávida da primeira filha, ela se dispôs a participar da passeata pelo Dia Nacional de Luta - convocado pela UNE. O episódio ficou conhecido como “O Massacre da Praia Vermelha”. De acordo com José Luiz, eles foram massacrados e, depois da invasão à faculdade, foi preciso sair às pressas. “Nós estávamos ocupando a faculdade de Medicina e enfrentando várias dificuldades. A repressão foi grande. Foi um dia marcante nas nossas vidas”.
Os militares adentraram o prédio na madrugada. José Luiz conta que a medida que os estudantes “cediam” espaços para as autoridades, conseguiam se fortalecer no espaço seguinte. Até que chegaram na parte mais alta da Faculdade Nacional de Medicina (atual UFRJ). A partir daí, se formou uma espécie de “corredor polonês” que, com muita pancadaria, arremessava os estudantes para dentro dele. “Nós quase fomos mortos nesse corredor. Fomos asfixiados e eles literalmente pisavam na gente”.
Como era o presidente da UNE, José Luiz precisava ainda mais de cuidado contra as agressões. Se não fosse Nair e mais outras duas amigas, a situação dele poderia ter sido ainda pior.
Depois disso, muita coisa ainda estava por vir na vida dos dois. José Luiz ressalta que 1968 foi o período mais radical do regime militar e, uma das motivações para continuar na luta era ter consciência de que a população queria um país diferente. “Eles (os militares) dentro da sociedade sempre foram derrotados. Nós éramos a maioria e queríamos mudar o cenário”. Em 68, diante de vários acontecimentos, dois que certamente ainda estão marcados na memória de José Luiz são: a passeata dos 100 mil e o Congresso de Ibiúna.
Mesmo estando proibidas as reuniões das UNEs, os estudantes realizaram o 30° Congresso de forma clandestina, com a participação de pouco mais de mil estudantes. Este foi, sem dúvidas, um dos momentos mais marcantes da época. O Congresso aconteceu em Ibiúna (SP) e terminou com a prisão de cerca de 900 pessoas. José Luiz estava entre eles.
A escolha para a realizar o encontro em um sítio no interior de São Paulo se deu por conta do risco que os estudantes tinham consciência que corriam. Mesmo assim, acabaram sendo descobertos. A cidade pequena ficou movimentada e o comércio teve vendas muito acima do normal, o que gerou desconfiança por parte dos moradores de Ibiúna e das autoridades. Com isso, no dia 12 de outubro de 68, o sítio foi cercado por centenas de policiais e houve a repressão contra os estudantes. Quando estava sendo transportado, José Luiz conseguiu arrumar um jeito de fugir das mãos dos militares. Após esse episódio, passou a viver clandestinamente em estados do Nordeste.
Durante o período da ditadura, José Luiz e Nair sofreram também pelas amizades. Amigos mortos, amigos torturados. Um dos casos mais impactantes para Nair foi o que aconteceu com sua amiga Gilse Cosenza. Em 68, Gilse foi presa e sofreu torturas físicas e sexuais. Assim como Nair, Gilse era uma das líderes da Faculdade de Serviço Social e, por conta do “477”, também só pôde ficar na universidade até o terceiro ano do curso. O decreto n° 477 ficou conhecido como “AI-5 das universidades” e foi autenticada por Costa e Silva em fevereiro de 1969. A lei punia professores, estudantes e funcionários que eram considerados subversivos ao regime militar.
Gilse ficou presa durante meses e a violência que sofreu foi registrada no livro “As Moças de Minas”, do jornalista Luiz Manfredini. Sabendo da história da amiga, Nair conta que até hoje não se sentiu encorajada a ler o livro que retrata os detalhes das torturas sofridas por Gilse e mais três mulheres. “A Gilse é um exemplo de pessoa, foi uma grande militante, uma pessoa linda e uma figura humana ímpar. Ela foi uma mulher guerreira”, lembra Nair.
Pela admiração e em forma de homenagem, Nair colocou em uma das filhas o nome da amiga. Gilse morreu em 2017, aos 73 anos. Nair relembra como foi um dos últimos encontros em que a amiga retratou o que sofreu. “Quando ela começou a falar, entendi bem o significado da expressão de levar um soco no estômago”.
Em outros casos, as pessoas eram torturadas e depois mortas. Como aconteceu com Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto. Amigo de José Luiz, ele era comandante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). O rapaz foi assassinado na Casa da Morte, em Petrópolis, em 1971. Além dele, outros 19 presos políticos foram mortos e esquartejados. “Ninguém sabe que existiu um Beto, porque ele foi trucidado. Ele foi ‘morto vivo’. Eles arrancaram cada pedaço do Beto com ele ainda vivo. Essa é uma das mortes mais impressionantes que eu conheço”.
Além de Beto, outro amigo relembrado por José Luiz, foi João Batista Drummond. “A tortura matou muitos companheiros, amigos e irmãos. O João era meu amigo da UFMG e fazia parte do Diretório Acadêmico das Ciências Econômicas. Ele foi preso no Massacre da Lapa, onde também tive vários amigos mortos. No caso do João, foi preso, torturado e depois morto”. José Luiz fala que as duas filhas de João ainda vivem na França. “Elas não tiveram condições de retornar ao Brasil depois do exílio por conta de tanto sofrimento”.
A França também foi o destino de José Luiz e Nair. Eles decidiram se exilar pouco depois de Nair conseguir sair da prisão em Recife. Ela estava grávida do terceiro filho e foi presa quando fazia uma panfletagem. O perigo foi aumentando, assim como a preocupação com os filhos. Nair relembra como se deu sua prisão.
Depois de um longo período vivendo na clandestinidade - Nair com o codinome “Norma” e José Luiz com o nome de “Isaac”-, foram para a França em 1972. Se engana quem acha que mesmo distante do Brasil eles deixaram de lutar contra a repressão. Durante o exílio participaram de denúncias contra a ditadura brasileira.
Só durante o exílio os dois puderam terminar a graduação. Nair terminou o curso de Serviço Social e José Luiz se formou em Medicina em 1979 pela Universidade de Paris. Distante do Brasil, por lidar diariamente com imigrantes que passavam por grandes dificuldades na Europa, Nair se aproximou do movimento feminista. José Luiz também pôde ter experiência na sua área e atuou durante um período como enfermeiro.
Quando retornaram para o Brasil, em 1979, após a decretação da anistia, foram morar em Belo Horizonte. José Luiz passou a trabalhar no hospital universitário da UFMG mas continuou se envolvendo com a política. Ingressou no Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), assumiu o mandato na Câmara dos Deputados e realizou trabalhos legislativos como membro titular das comissões do Interior e da Saúde. Em 1984 votou a favor da emenda Dante de Oliveira, que propunha a realização de eleições diretas já para 1985. Como não foi aprovada, em 85 ocorreram eleições indiretas com a vitória de Tancredo Neves que morreu antes de assumir, levando José Sarney ao poder. A primeira eleição direta para presidente, desde a redemocratização, só ocorreu 1989.
José Luiz integrou também o Partido Socialista Brasileiro (PSB), por meio do qual se candidatou para a prefeitura de Juiz de Fora. Mais tarde, coordenou na mesma cidade a campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva. Nos anos 90 ingressou no Partido dos Trabalhadores (PT) e no fim da década filiou-se ao Partido Comunista do Brasil (PC do B).
Nair também se manteve em contato com a política. Por se aproximar do movimento feminista durante o exílio, ela carrega consigo ainda hoje a bandeira dessa luta. Quando retornou para Juiz de Fora foi professora na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), na Faculdade de Serviço Social. Nair também se filiou ao PC do B e no início dos anos 2000 foi vereadora na cidade. Recentemente recebeu a medalha “Rosa Cabinda”, uma homenagem criada pelos coletivos de mulheres e feministas.